Educação quilombola: o futuro é coletivo






Texto: Giovanna Consentini Fotos: Fernanda Frazão
Filme: André D'Elia
30 de maio de 2019

Na comunidade do Ariramba não há escola, mas isso não impede seus jovens de lutarem por educação

 

Chá de boldo já um antigo conhecido para combater dor de fígado, a quinarana ajuda a curar malária, enquanto a casca da castanheira é um ótimo antiinflamatório. No quilombo Ariramba, quando alguém fica doente recorre primeiramente a floresta. Esse conhecimento das plantas medicinais é passado de geração para geração na comunidade. Quem nos contou tudo isso foi Inês Nunes de Oliveira. A jovem, filha de Gervásio, e neta de seu Joaquim, o fundador do Ariramba, acumula o saber ancestral da “medicina da floresta” em seus poucos 20 anos de vida. “Eu não uso remédio de farmácia, eu uso simplesmente o remédio da natureza”.

Na Amazônia, o uso de plantas medicinais e seus derivados é uma prática comum nas populações tradicionais, sejam elas indígenas, ribeirinhas e quilombolas. Além de fundamental para a manutenção do modo de vida dessas comunidades e da floresta conservada, esse conhecimento popular pode ajudar na medicina tradicional. Tanto que a prática já é incentivada pela Organização Mundial da Saúde. No Brasil, desde 2006, existe o Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápico, com o objetivo de garantir o acesso seguro e o uso racional de plantas medicinais e fitoterápicos na rede pública de saúde.

E para aliar o saber popular com o conhecimento científico é que existe a etnobotânica, o ramo ciência que estuda aplicações e os usos tradicionais das plantas pelos povos. Esse é o objetivo de Inês, que sonha em entrar no curso de biologia. Mas para isso a jovem precisa primeiro passar no vestibular. Realidade não tão simples para quem mora em Ariramba. 

É que a comunidade não possui nenhuma escola. Do ensino básico ao fundamental as crianças precisam se locomover por, no mínimo, 6 horas de barco diariamente até a comunidade mais próxima, Boa Vista. Isso quando a seca do rio não impossibilita as viagens de barco. Eudicéia Oliveira Pereira, de 23 anos, passou por essas dificuldades na época em que estudava: “eu e os meus irmãos acordávamos 3 horas da manhã e chegávamos 8 da noite em casa”. Para quem cursa o ensino médio, a solução é mais comum para os estudantes quilombolas é se mudar para Oriximiná, gasto que nem todas as famílias conseguem arcar. Em Oriximiná também fica um dos campi da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), onde Eudicéia almeja o cursar pedagogia, “eu tenho vontade de exercer o meu papel aqui na minha comunidade”.

 

Quilombo Ariramba, Inês



“Eu não uso remédio de farmácia, eu uso simplesmente o remédio da natureza”

Inês Nunes de Oliveira,  20 anos, liderança da comunidade do Ariramba no Pará.

Quilombo Ariramba, Inês

A forma de ingresso tradicional da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) é a partir do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), mas por virem de uma comunidade quilombola, tanto Inês quanto Eudicéia podem participar do Processo Seletivo Especial Quilombola (PESQ). Esse tipo de vestibular é uma política afirmativa implementada desde 2012 na instituição. Outras universidades como Universidade  Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Universidade  Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), e recentemente, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) possuem processos seletivos parecidos.

O vestibular especial da Ufopa funciona assim: estudantes indígenas passam por uma prova de redação e estudantes quilombolas fazem uma prova específica de língua portuguesa com questões discursiva e objetivas baseadas em textos sobre a cultura quilombola, território, identidade, elementos ligadas a história dos quilombolas no Brasil, na Amazônia e no Pará. Para todos os cursos da universidade são oferecidas, em média, 2 vagas para estudantes de comunidades quilombolas e 2 vagas para estudantes indígenas.

 

Segundo dados da Ufopa, até 2018, 737 alunos ingressaram na universidade por meio dos processos seletivos especiais, sendo 487 indígenas e 250 quilombolas. A fim de ajudar o desempenho dos estudantes da região, desde 2015 acontece o cursinho quilombola, uma iniciativa voluntária que hoje faz parte do processo institucional da universidade. As aulas têm ênfase em leitura e interpretação de textos sobre história, cultura e território quilombola. Quem coordena o cursinho é o professor Luiz Fernando França, que também leciona literatura africana em língua portuguesa na mesma instituição.

Acontece que desde de janeiro de 2019, o benefício vem sendo cortado. Apesar  da mobilização de estudantes indígenas e quilombolas, 96 bolsas foram suspensas sem nenhum previsão de retorno. Segundo a pesquisa de mestrado de Terezinha Pereira, realizada na mesma Ufopa, o auxílio financeiro do MEC é fundamental para garantir a permanência desses estudantes na Universidade. E com o corte de 30% no repasse às universidades e institutos federais, a situação pode ser ainda mais problemática já que as instituições federais do Pará temem até mesmo a paralisação de suas atividades.

Isso pode afetar o sonho de Eudicéia, que não pensa em desistir. Ela se inspira em sua própria história e na de outros tantos jovens quilombolas que lutam todo dia pelo direito constitucional ao acesso a educação no país: “quando eu olho para trás, é isso que me dá força”, finaliza.

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